SOBRE UVAS, VINHOS E HISTÓRIA… BORDEAUX… SAINT EMILION

02 jun 2015 às 16h33

A região de Bordeaux é considerada uma das maiores na produção de vinho tinto, e produz também alguns dos melhores e mais caros do mundo.

Para conhecer e apreciar esta região, é preciso dedicar no mínimo três dias inteiros.

Como sugestão, eu diria, um dia inteiro na cidade de Bordeaux, um dia na região do Medoc e um outro em Saint Emilion.

Apesar de ser muito perto, a locomoção de um lugar para o outro é complicada.

Bordeaux é uma cidade grande, muito movimentada, circundada por um anel viário, que tem trânsito equivalente ao da Marginal do Tietê.

O Medoc, onde estão os grandes produtores de grand crus, entre eles os Rothschilds, fica a Oeste da cidade.

Já a região de Saint Emilion, a mais linda e que agrega uma quantidade enorme de produtores, incluindo as cidades de Pomerol, Cadillac e Libourne, fica a Leste de Bordeaux.

Se ficar hospedado em Bordeaux e de lá sair para conhecer as duas regiões, o tempo que levará para transitar pelo anel viário, entre ir e vir, será muito grande.

O melhor é definir antes quais são suas preferências e aí então escolher onde ficar.

Nesta última viagem, fui pela Air France, São Paulo – Paris – Bordeaux.

Aluguei um carro e fui direto para Saint Emilion.

Desta vez, preferi privilegiar esta região, e de lá sair para passear.

AQUITÂNIA

Bordeaux foi fundada por volta de 300 a.C. por tribos Celtas.

O Imperador Romano Augusto em 27 a.C. deu o nome de Aquitânia a toda esta província banhada pelos Rios Dordonne e Gironde, e fez de Bordeaux sua capital.

Nesta altura já havia vinhedos e se produzia vinhos. Coube aos Romanos, como em todos os lugares que dominaram, melhorar e incrementar a produção.

A cidade e a região floresceram até século III.

Nos séculos seguintes, a cidade foi invadida, saqueada por vândalos, e dominada por diversos povos como os Visigodos e os Francos, caindo na obscuridade até o século VII.

Vale a pena falar um pouco dos Francos.

Não existem registros históricos sobre a origem dos Francos, acredita-se que eram grupos germânicos nômades que viviam na região do Rio Reno.

Como criavam sempre problemas para os Romanos, o Imperador Juliano autorizou-os a se fixarem na Gália Belga.

A partir daí se expandiram, dando origem ao povo francês.

O franco Clóvis I é reconhecido como o primeiro Rei da França, coroado em 481 d.C. na Catedral de Reims.

Outro famoso Rei dos Francos foi o Católico Carlos Magno, que conquistou grande parte da Europa e teve uma importância tremenda ao vencer os Árabes em Poitiers/Tours em 732, livrando a Europa de se tornar uma grande nação do Islã.

Os Francos dominaram a região da Aquitânia até o ano 877, quando então se tornou um Ducado independente.

Bordeaux, às margens do Rio Garrone, já era então uma cidade muito importante, principalmente por ter seu porto com acesso direto ao mar, e muito perto da Inglaterra.

Foi a partir do século XII que teve início o desenvolvimento de toda esta região.

Leonor, Duquesa de Aquitânia, era uma das noivas mais desejadas da época, pela importância que Aquitânia e Bordeaux representavam no cenário europeu.

Leonor decidiu se casar com o Rei LuizVII da França.

Independente, aventureira, decide, contrariando o marido, participar da 2ª e malsucedida Cruzada, para libertar Jerusalém dos gentios.

Em sua volta, com autorização do Papa, divorcia-se do Rei Luiz VII, e se casa com o então Duque da Normandia, Henrique II.

Dois anos depois, Henrique II assume o trono da Inglaterra, e Leonor torna-se Duquesa da Aquitânia, Duquesa da Normandia e Rainha da Inglaterra.

É neste período que a produção de vinho toma um impulso fantástico.

Sendo Bordeaux um porto muito próximo da Inglaterra, e sendo o Rei governante também de toda região da Normandia e Aquitânia, autoriza e assina tratados e negócios para a produção e exportação de vinho, inclusive para outros países.

Os vinhedos se multiplicam em toda a Aquitânia.

Bordeaux torna-se uma das cidades mais importantes de toda a Europa.

A partir de então, esta região atrai um número enorme de investidores na produção de vinho.

Só como curiosidade histórica, Leonor da Aquitânia, Rainha da Inglaterra, foi durante sua vida a mulher mais poderosa da Europa. Após a morte do Rei Henrique II coube a ela administrar as desavenças dos filhos na luta pelo trono. Um de seus filhos, o Rei Ricardo Coração de Leão, seguiu seu exemplo. Foi lutar contra Saladino em Jerusalém, junto com Felipe Augusto, Rei da França, e Frederico Barbarossa do Sacro Império Romano-Germânico, deixando o irmão mais novo João Sem Terra em seu lugar.

Nesta época, na história da Inglaterra criaram-se lendas que permanecem vivas até os dias de hoje, como Robin Hood e Ivanhoe.

O Ducado de Aquitânia floresceu até a morte da Rainha Leonor, em 1204. A partir daí sofreu as consequências das diversas guerras e batalhas pelo domínio da região, e ao final da Guerra dos 100 Anos (1337-1453) passou definitivamente a pertencer à França.

BORDEAUX

Bordeaux desde sua fundação em 300 a.C., por sua localização estratégica, sempre desempenhou um papel importante na história da Europa e da Humanidade.

Independentemente da produção do vinho, seu porto, voltado para Oeste, para as Américas, exerceu sempre uma atração aos governantes de todas as épocas.

No século XVI, Bordeaux teve um desenvolvimento muito grande. Além da exportação de vinho, centralizou o comércio mundial de açúcar e o tráfico de escravos para os países da América do Norte e Central.

Neste período, a cidade cresceu e tornou-se uma metrópole.

Durante a 2ª Guerra Mundial, foi base para submarinos italianos e alemães, que saiam dali para atacar os navios dos aliados.

Muitos deles ainda ficaram por lá e tornaram-se atrações culturais.

Foi em Bordeaux que o Cônsul Português Aristides Sousa Mendes, contrariando as ordens de Salazar, emitiu milhares de vistos autorizando refugiados a entrar em Portugal. Acredita-se que tenha salvado mais de 10.000 judeus do Holocausto.

A cidade é muito bonita, o centro histórico, as construções, os prédios antigos, o Garrone que se mistura com as águas do mar e cria um estuário enorme.

Vale a pena visitar o Musée d’Aquitaine, o Musée du Vin et du Négoce e a Casa de Goya, pintor espanhol que viveu os últimos quatro anos da sua vida na cidade.

O escritor Victor Hugo, autor do livro Os Miseráveis, disse “Toma Versailles, junta com Antuérpia e você tem Bordeaux!”.

Antuérpia é o porto mais importante da Bélgica, na foz do Rio Reno.

MEDOC

O Medoc é uma região a Oeste de Bordeaux, onde estão concentrados os grandes produtores de grand crus.

Pelo anel viário, o caminho é pela saída 8.

Você pode se orientar pelo GPS ou seguir as placas.

A cidade de Pauillac, que fica na parte mais alta da região, abriga o Château Mouton-Rothschild, o Château Lafite-Rothschild e o Château Latour, considerados os mais importantes grand crus.

Toda esta região do Medoc fica muito próxima do mar, o clima marinho e terroir dão uma qualidade muito especial aos vinhos.

Outras cidades muito próximas uma das outras, como Margaux, Saint Estèphe, e Saint-Julien abrigam vinícolas importantes que merecem também ser visitadas.

Para a maioria delas, a visita deve ser agendada antecipadamente.

É uma região muito bonita. As estradas são pequenas, com um movimento relativamente baixo. Dá para guiar o carro tranquilamente, passando pelas vilas e cidades. Parando para visitar as vinícolas, degustando um bom vinho e curtindo a região.

Para a produção dos vinhos, utilizam o que chamam de corte bordalês, 60% Cabernet Sauvignon e 40% Merlot, podendo incluir uma pequena porção de Petit Verdot.

Sem considerar o tempo de travessia do anel viário, contando já a partir da saída 8, leva no máximo uma hora até a região dos vinhos.

SAINT EMILION

A região a Leste de Bordeaux, onde está situada a vila medieval de Saint Emilion, é para mim a região mais bonita. Uma infinidade de vinhedos a perder de vista.

De Bordeaux a Saint Emilion, são menos de 100 quilômetros de distância. Sem considerar o tempo do anel viário, leva no máximo quarenta e cinco minutos.

Nesta viagem, me hospedei em uma pousada na cidade. Dentro, não há circulação de carros. Há bolsões de estacionamento nas várias entradas. A vantagem é a facilidade de chegar e sair com o carro.

A história da região de Saint Emilion é a mesma da Aquitânia e de Bordeaux. Os Celtas, os Gaulios, os Romanos, os Visigodos, Francos dominaram por um tempo a região e provocaram a fixação das pessoas na terra.

A produção de vinho já existia e foi incrementada com a presença dos Romanos e se desenvolveu durante o domínio dos Reis da Inglaterra.

A vila medieval de Saint Emilion foi criada no século VIII, quando um frade confessor nômade chamado Emilion aproveitou uma pequena caverna nas pedras e fez dali sua ermitage.

Após alguns milagres atribuídos ao eremita, o lugar tornou-se um centro de peregrinação e a vila foi naturalmente sendo formada com a chegada de peregrinos e outros religiosos.

Foram construídos vários monastérios e tornou-se um importante centro da religião católica.

A produção de vinho nesta época cresceu bastante pela atuação dos religiosos que produziam não só para consumo próprio como para venda, assim mantendo sua subsistência.

O fortalecimento do comércio com a Inglaterra, com a própria França e o resto do mundo, fez com que o plantio dos vinhedos e a produção de vinho crescessem muito, e hoje tem grande participação no total de vinho produzido na região de Bordeaux.

Saint Emilion é uma pequena vila medieval, cercada de muralhas, com construções muito antigas, ruas estreitas, com declives e aclives muito acentuados, que para caminhar exige certo esforço. Ou seja, há muitas subidas e descidas.

No Centro de Turismo, que fica na parte alta você pode conferir as atrações da cidade e da região, e obter informações sobre reservas e visitas às vinícolas.

Há um tour muito especial que conta a história de Saint Emilion, e que leva os turistas a visitar a caverna, e a ermitage do Santo. Uma espécie de trono escavado na pedra era, segundo a história, onde ele sentava para meditar. Segundo uma antiga lenda Celta, dizem que, se uma mulher estéril sentar-se no trono de Saint Emilion, tornar-se-á fértil.

Há ainda, no subsolo, uma catacumba e uma igreja escavada nas pedras construída por um nobre que tomou como modelo uma igreja que viu na Capadócia, durante as Cruzadas.

A tumba de Saint Emilion nunca foi identificada.

Sobre este lugar foi construída uma igreja e que é hoje a principal da cidade.

Saint Emilion faz parte da rota francesa dos peregrinos a caminho de Santiago de Compostela.

Durante a Guerra dos 100 Anos (1337-1453), passou várias vezes pelos poderes da Inglaterra e daFrança. A partir de 1453, passou definitivamente para o poder da França.

Esta é uma região de vinho incrível. Além de Saint EmilionPomerol, Libourne, Fronsac, Graves e outra mais. Para visitar muitas delas, é necessário fazer reserva, mas em algumas há atendimento direto.

Estas vilas e cidades ficam muito próximas umas das outras e em volta delas há uma infinidade de vinhedos. É impressionante, prazeroso e lindo passear pelas pequenas estradas que ligam todas elas.

Não existe, como na Borgonha, uma formalização obrigatória da utilização de castas de uvas. Nesta região, na produção do vinho utiliza-se tradicionalmente 80% Merlot e 20% Cabernet Franc. Há sempre a possibilidade de uma variação percentual.

Algumas vinícolas têm incluído uma pequena parte de Malbec e Petit Verdot. Mas a regra geral é Merlot e Cabernet Franc.

Um pouco mais ao sul, na região de Graves, onde estão Pessac-Leognam e Barsac, vale a pena uma visita a Sauternes. Ali é produzido, segundo os locais, o melhor vinho branco doce do mundo. Por volta de setembro, as uvas são atacadas por um fungo microscópico que faz com que percam a maior parte da água, restando então uma concentração maior de açúcar, o que dá uma característica toda especial ao vinho.

O Sauternes Château D’Yquen é o único grand crus nesta categoria.

Uma vinícola que sugiro visitar em Pomerol é a Château Siaurac. É um antigo palácio no meio dos vinhedos.

O tour inicia com um guia contando a história da vinícola, a genealogia da família, incluindo a visita a algumas dependências de sua habitação, um passeio pelos vinhedos, onde são apresentadas as diferentes castas. Depois, visita às instalações da produção e, finalmente, a degustação dos vinhos.

Fui agraciado pela recepção do proprietário Paul Goldschmidt que dedicou um bom tempo contando a história do vinho nesta região, mostrou-me ainda uma coleção de artes, que inclui esboços de Miró e Picasso e a primeira edição de um livro de Voltaire.

Eu recomendo fortemente, se você for à região de Saint Emilion, visitar a vinícola Siaurac, em Pomerol. Não há necessidade de fazer reserva.

Visitei mais umas cinco vinícolas familiares e, em cada uma delas, fui muito bem atendido. Importante notar que em toda esta região o profissionalismo é muito grande. O negócio do vinho é a base da economia, e eles sabem que nós visitantes somos muito importantes.

Eu sugiro a visita a esta região de junho a setembro. É quando os vinhedos estão cobertos de folhas e uvas.
Se desejar alguma dica, sugestão ou recomendação, contate-me miltonassumpcao@terra.com.br

Rio Gironde rodeado de vinhedos no Medoc
   
Indicação do Chateau Lafite Rothschild em Pauillac
  

Chateau Lafite Rothschild Igreja de Saint Emilion construída em quatro diferentes séculos
  
Grutas de Santo Hipólito, O Eremita, nos arredores de Saint Emilion
  
Visita a Vinícola Siaurac, com o proprietário Paul Goldschimidt
  
Saint Emilion rodeada de vinhedos
  
Estrada rural e vinhedo nos arredores de Saint Emilion
  
Catacumba onde estaria enterrado Saint Emilion.
  
Bordeaux às margens do Rio Garonne

                Vinícola Siaurac em Pomerol

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